quinta-feira, novembro 23, 2006

Imprudência e outras tantas informações

Gostaria de te escrever isto. Para te submeter a uma prova de fogo. A única que você não quer. Você se preparou para tudo. Me preparou para nunca te dar esta prova. Foi você quem me ensinou a apreciar os filmes tristes. Estava apaixonado, aprendi. E tive certeza da veracidade da harmonia perfeita. Em uma tarde, não tive mais. Do olhar cúmplice surgiu a necessidade de se explicar o segredo mais desvendável. Da saudade acostumada surgiu a ansiedade do novo. Do perfume de sempre surgiu um novo sabor. Disso tudo surgiu o medo. Entre outros, o principal é o de não ser perdoado.

minuto sete segundo cinqüenta e quatro

Foi o seu sorriso. Seu cabelo, dourado. Sua mão no seu cabelo dourado. Suas mãos inúmeras vezes no seu cabelo dourado. Foi você preocupada com o que eu estava vendo, do que eu estava rindo. De você. Da sua preocupação. Da sua felicidade breve. Do nosso encontro não marcado, da nossa aproximação indevida, da minha vontade. Das minhas dúvidas cômicas. Dos meus planejamentos secretos e inconfessáveis, porque não quero te assustar e porque não quero assustar ninguém. Foram as suas músicas, os seus talentos, o seu silêncio, foram as lembranças. Foi tão inesperado. A culpa foi sua. Talvez eu me arrependa, talvez eu permaneça triste. Talvez um dia a gente respire juntos de novo. Talvez amanhã os finais das músicas tristes não me lembrem você. E talvez, quem sabe, depois de amanhã a gente dance juntos nossa música eterna. Mas antes, talvez, façamos uma música favorita, juntos. Foi o seu olhar, seu olhar em mim. Foi sua atenção despejada apenas sob mim, por um minuto. Bastou um minuto. Foi tudo o que não aprendi com você. E é tudo o que gostaria de ensinar a você. Primeiro, as letras; depois, os números; em seguida, as cores; e, enfim, ensinar a se proteger. Das notas baixas, da aparente solidão ou apenas dos outros rapazes. Eu gostaria de ensinar a você. E gostaria de ser o primeiro. O primeiro a gente sempre esquece, sempre. E é por isso. Para doer menos. Talvez seja um bibelô passageiro. Talvez seja um eterno fim de música triste. Pois tudo o que sei sobre músicas tristes é o pouco que sei do motivo, da dúvida, da angústia e da culpa: foi o seu sorriso e a sua auto-suficiência.

Eu descobri tardiamente uma música, uma música linda, feita apenas para os ouvidos atentos. Harmoniosa. Cativante. Única. Tarde demais.


(catão.)

sábado, novembro 18, 2006

sobre curativos velhos.

ela sempre gostou dos curativos. mais que dos machucados e de tudo que eles traziam.
o curativo tinha qualquer significado especial. talvez fosse uma prova de que ela estava se recuperando.
Só havia um incoveniente... O curativo durava um dia, dois no máximo. O esparadrapo do exame de sangue, só meia hora!
e ela não queria tirar o curativo. Não achava certo tira-lo antes que se considerasse perfeitamente curada. Imagine só, aparecer com um esparadrapo enorme hoje e amanha, já sem nada. estará dando a falsa impressão que se curou. Vão todos a felicitar por uma coisa que não aconteceu. Porque só ela sabia quando estava realmente curada, de tudo.
Então, sabendo que se tirasse o esparadrapo um dia depois, não ganharia um outro, por já a considerarem "curada", o mantinha até ficar preto, preto, quase mofado. Molhava no banho, e secava com a toalha. quanto maior o curativo melhor... significava que a ferida era grande, e que ia te-lo com ela por mais tempo.
Fez dos curativos seus amigos, daqueles que te dizem "vai passar", e que não mentem, não vão embora antes de que você se sinta curado.
As vezes, dava até nomes aos curativos. mas nao os contava a ninguem. eram dela. dela.
e quando a mãe vinha insistir para que ela tirasse aquele pedaço de trapo do braço, ela olhava muito séria e dizia. "eu não estou curada ainda".
a mãe dava um sorriso, um pouco preocupada, e saía sem entender.
Ela ficava. se curando. até segundo sentimento.

m.

sábado, novembro 11, 2006

já não sabia de quem cobrar a sua infelicidade.

leu no jornal cessar fogo. mas não sabia como.

sexta-feira, novembro 10, 2006

o seu sonho americano.

recebi uma carta com seu nome no envelope. Sem endereço como gostas de fazer, para parecer que não pertences a lugar nenhum. ridiculo, pois sempre tudo que quisestes era pertencer a algum lugar. Como nao podes, finges que o aceita bem.
chegou a carta, e eu que ia por esses dias de nao sair de casa, com minhas pantufas e pijama, a peguei nas mãos, quentinha ainda das mãos do carteiro.
Tive vontade de te enviar de volta, sem abrir.
Mas você já o sabia, tenho uma curiosidade infantil, que por agora, vai morrendo, como tudo mais. Mas que ainda está aqui.
e talvez a mandastes para me provar, voce, que sempre quer me provar algo, de que nao mudei tanto assim... Abri a carta.
me contavas em poucas e sinteticas palavras que tinhas conseguido. Que ias morar nos Estados Unidos. Nao dei atenção a que cidade.
Vais buscar lá o que sempre sonhou. O que significa isso você nunca disse. Nem sei se sabes.
És mesmo tão patético a ponto de fazer isso. de buscar o sonho americano, tao mediocre como todos os outros.
Nesses dias que não consigo me levantar na cama de tão pesada que estou por dentro, e tu te vais a América de meus amores, te odeio mais do que qualquer outro dia.
Ainda aí, distante, me fazes infeliz.


m.

segunda-feira, novembro 06, 2006

negociaçoes com os deuses.

leaozinho, quando pequena, aprendeu que devia rezar a papai do céu antes de dormir. Então, tomava seu banho, deitava na cama e rezava. tinha preguiça de ajoelhar e já considerava, desde então, exagero.
assim como habitualmente sonhava que alguem vinha assaltar-lhes a casa e ela conversava com o ladrão, o conquistava por sua simpatia, e o convencia de não lhes roubar, indo ele assim embora, ainda depois de tomar um copo de leite com ela e lhe dar um abraço. Assim como sonhava com isso, e com que ainda salvava a familia inteira de acidentes de trens e etc, ela acreditava que como mais ninguém, podia negociar com os deuses. Ou com Deus. Não lhe importava muito quantos eram.
Tinha longas conversas ao deitar-se na cama, de cabelos molhados, com eles. Negociava. Troco que a mamãe não morra por eu fazer todas as lições de casa. Troco papai me levar mais um dia no cinema por escovar os dentes todos os dias. Troco ter um irmão por não fazer mamãe triste nunca mais.
Prometia coisas que jamais poderia cumprir, mas que considerava mesmo promessas muito importantes, e estava segura que deus tinha aceitado a troca. Mas, como nunca chegava a cumprir as promessas, ou em sua maioria elas eram feitas de pra sempre, achava que ou a culpa era dela, por não cumprir a sua parte do trato, ou que o tal do pra sempre ainda não havia chegado, pra que ela pudesse receber sua parte da troca.
depois, ao crescer, sem se lembrar de tudo isso, vivia a dizer que não sabia negociar; não sabia pechinchar.

tudo que lhe sobrou das crenças de criança, enfim, foi a falta de crença. nos deuses, nas trocas e nela mesma.

m.

sexta-feira, novembro 03, 2006

Vestiu um vestidinho ridículo, na tentativa de se fazer mais bonita. Desembaraçou os cabelos com certa pressa, se maquiou de forma descuidada e saiu de casa.
Precisava desesperadamente se sentir bem, e foi dançar a uma discoteca, que lera em algum lugar que era da moda. Sempre teve uma ingenuidade disfarçada e cria nos jornais mais do que deveria. Adorava lê-los pela manhã. E essa manhã mesmo, havia circulado o nome e o endereço de uma boate “inn”.
Algo tenho que admitir, qualquer um que a visse naquela noite diria que estava notável. Bonita, não. Mas a sua vontade de parecer bem era tão indisfarçável, que chegava a ser curiosamente triste. Tinha uns olhos perdidos e volta e meia lembrava de forçar um sorriso.
Chegou a boate, uma portinha laranja e rosa, com letras modernas, bem grandes na porta. Entrou decidida e pediu um drink. Dessa vez não achou graça. Apontou qualquer um no cardápio, agradeceu e foi ver a pista de dança.
O lugar era horrível. Tudo de um mau gosto indescritível, e ali, apenas uma dúzia de turistas meio perdidos.
De alguma forma, sentiu-se confortável.
Uma musica dos Beatles começou a tocar. Ela terminou a bebida e dançou. O vestido roto, de bolinhas já algo apagadas, ia ficando molhado. Ela dançava, com ódio. Dançava desajeitada. de qualquer jeito. O importante era movimentar-se, pensou sem nem se dar conta.
Naquela noite ninguém a olhou.
Ela tampouco percebia a falta de elegância em cada movimento seu. O vestido ficando molhado, os cabelos em pé. Ela dançava, dançava, de olhos fechados, franzindo o rosto como se fizesse um trabalho muito pesado.
Não bebeu mais. Dançou a coleção inteira de beatles, beegees e terminou sozinha na pista, quando já não ha-se-via mais quase ninguém, dançando uma musica melosa do roupa nova.
Acenderam as luzes da discoteca moderna.
-Caralho, não quero voltar pra casa.
não tinha outro lugar pra ir. Sem refúgio, saiu. Suada, rota, acabada.
Pensou que voltaria ali. Mas, por certo não voltaria nunca mais.

m.
Hoje pela manhã, tomando meu café e lendo o jornal, como de hábito, li uma notícia que me lembrou você.
pitoresco talvez relacionar os três, você a noticia e eu, mas o fato é que lembrei de você desesperadamente, e tentei me convencer de que a opção que tomei, por ir-me embora, foi por fim a melhor.
um casal de americanos. o homem enforcou a mulher, cozinhou sua cabeça e o resto do corpo cortou em pedacos e pôs na geladeira.
depois se matou.
gargalhei mórbida, com o cigarro colado na boca.
achei graça lembrar de você, fazendo uma metáfora ridícula, como sempre sigo fazendo.
em nossas conversas era sempre eu quem nos comparava com uma faca e um garfo, ou com um cocô e uma mosca.
depois, fui invadida por uma tristeza quase insuportável. mas não senti tua falta.
abri meu armário capenga, que foi o único que encontrei por preço baixo e aí sim, senti falta. mas apenas de uma velha camiseta listrada.
acho que deixei pendurada aí, atrás da geladeira. na certa apodreceu, ou queimou, de tanto esperar por ficar seca.
nunca sinto pena. e não tenho pena de nada disso. estou por fim, em meio a tanto medo e desespero, encontrando quem eu sou. o que talvez não exista.
as vezes sinto vontade de te dizer que mudei um pouco. que ja não uso brincos, esmaltes, e que tenho ficado cada vez mais sóbria, usando marrom, a cor que você mais odeia.
talvez faça pra te provocar, mesmo sabendo que você não vê.

não tenho forças pra construir uma vida. tiro forças dos livros, de historias sensacionalistas de falsos-herois da tv, de filmes de ação. me arranco as tripas e você, com seu jeito simplista, nunca entenderia.

m.

quinta-feira, novembro 02, 2006

a última viagem que fiz

Sua ausência me faz falta. Lindinha. Ô, Lindinha. Sua agressividade não nos convence mais!

Lindinha foi um ser humano frenético até por volta dos doze anos de idade. Depois, não sabemos ainda o que aconteceu, vamos descobrir um dia, mas parece que ela amadureceu, ficou quase podre, e acabamos aprendendo desde criança que a maturidade faz mal, enfraquece os nervos e a alma. Lindinha fez aula de balé, aula de violão, de canto, de reza, era delicada, já se ajoelhou em milho e nunca pintava os cabelos. Quando ela era criança — eu era menor ainda —, era quase minha mãe. Dava banho, dava pão, dava goiaba, dava carinho, lia o gibi, ensinou-me o terço e não tinha preguiça de nada. Depois cresceu, ficou manhosa, buchuda, desaprendeu a rezar e nunca mais fez promessa nenhuma para mim. Foi uma perda em meu coração. Da noite para o dia, ela se desiluminou. Era alva, parecia um gato branco; ficou cinza e fedorenta, parecia um esgoto velho, e todos diziam que o motivo era que havia sido mal amada. O primeiro filho “escorregou para a privada”. O segundo nunca nem mostrou barriga. Ficamos na dúvida sobre se era pura invenção de seus miolos endoidecidos, impressionados ainda pela perda do primeiro, ou se o bebê escorregou de novo antes mesmo de dar mostras ao corpo. Mas a gente não gostava de ficar em dúvida sobre Lindinha. Nem com pena.

Um dia acordamos, sol de rachar, chão esfumaçando, para completar era domingo. Acordei com o grito agudo e abusado da avó atrás de Lindinha. Resposta só do eco da voz irritada. Ninguém sabia, ninguém vira, ninguém ouvira. A respiração parou e o sol também. Em cima de minha cabeça. Rachando tudo. Meu coco, minhas cicatrizes, o meu coração. Fiquei imóvel na calçada, assim, durante catorze dias, e até o vento parou. Eu só ouvia o zumbido das moscas-de-sol e o rádio de pilha tocando música sertaneja, ao fundo, bem baixinho.

No décimo quinto dia, acordei. Algum dia depois, estava na cidade e vi Lindinha. Ela pegou o mesmo ônibus que eu. Não havia mais assento, ela ficou de pé. O cabelo espichado, cor-de-rosa crepom, a unha pintada, as roupas afetadas. Era você mesmo, Lindinha? Não mudou só de endereço? Sua unha estava tão crescida que desisti de me apresentar, adulto, a ti: fiquei com medo do tamanho do arranhão. Chegou o meu ponto, desci; me arrependi para sempre de não ter ido até você. Você se lembra daquela metáfora do abacate? A casca é maleável, o caroço é a essência, e a essência não muda. E o abacate mais gostoso é o quase verde, quase maduro.

Lindinha, sua ausência me faz falta.
Ou é a sua presença?

(catão.)