a última viagem que fiz
Sua ausência me faz falta. Lindinha. Ô, Lindinha. Sua agressividade não nos convence mais!
Lindinha foi um ser humano frenético até por volta dos doze anos de idade. Depois, não sabemos ainda o que aconteceu, vamos descobrir um dia, mas parece que ela amadureceu, ficou quase podre, e acabamos aprendendo desde criança que a maturidade faz mal, enfraquece os nervos e a alma. Lindinha fez aula de balé, aula de violão, de canto, de reza, era delicada, já se ajoelhou em milho e nunca pintava os cabelos. Quando ela era criança — eu era menor ainda —, era quase minha mãe. Dava banho, dava pão, dava goiaba, dava carinho, lia o gibi, ensinou-me o terço e não tinha preguiça de nada. Depois cresceu, ficou manhosa, buchuda, desaprendeu a rezar e nunca mais fez promessa nenhuma para mim. Foi uma perda em meu coração. Da noite para o dia, ela se desiluminou. Era alva, parecia um gato branco; ficou cinza e fedorenta, parecia um esgoto velho, e todos diziam que o motivo era que havia sido mal amada. O primeiro filho “escorregou para a privada”. O segundo nunca nem mostrou barriga. Ficamos na dúvida sobre se era pura invenção de seus miolos endoidecidos, impressionados ainda pela perda do primeiro, ou se o bebê escorregou de novo antes mesmo de dar mostras ao corpo. Mas a gente não gostava de ficar em dúvida sobre Lindinha. Nem com pena.
Um dia acordamos, sol de rachar, chão esfumaçando, para completar era domingo. Acordei com o grito agudo e abusado da avó atrás de Lindinha. Resposta só do eco da voz irritada. Ninguém sabia, ninguém vira, ninguém ouvira. A respiração parou e o sol também. Em cima de minha cabeça. Rachando tudo. Meu coco, minhas cicatrizes, o meu coração. Fiquei imóvel na calçada, assim, durante catorze dias, e até o vento parou. Eu só ouvia o zumbido das moscas-de-sol e o rádio de pilha tocando música sertaneja, ao fundo, bem baixinho.
No décimo quinto dia, acordei. Algum dia depois, estava na cidade e vi Lindinha. Ela pegou o mesmo ônibus que eu. Não havia mais assento, ela ficou de pé. O cabelo espichado, cor-de-rosa crepom, a unha pintada, as roupas afetadas. Era você mesmo, Lindinha? Não mudou só de endereço? Sua unha estava tão crescida que desisti de me apresentar, adulto, a ti: fiquei com medo do tamanho do arranhão. Chegou o meu ponto, desci; me arrependi para sempre de não ter ido até você. Você se lembra daquela metáfora do abacate? A casca é maleável, o caroço é a essência, e a essência não muda. E o abacate mais gostoso é o quase verde, quase maduro.
Lindinha, sua ausência me faz falta.
Ou é a sua presença?
(catão.)
Lindinha foi um ser humano frenético até por volta dos doze anos de idade. Depois, não sabemos ainda o que aconteceu, vamos descobrir um dia, mas parece que ela amadureceu, ficou quase podre, e acabamos aprendendo desde criança que a maturidade faz mal, enfraquece os nervos e a alma. Lindinha fez aula de balé, aula de violão, de canto, de reza, era delicada, já se ajoelhou em milho e nunca pintava os cabelos. Quando ela era criança — eu era menor ainda —, era quase minha mãe. Dava banho, dava pão, dava goiaba, dava carinho, lia o gibi, ensinou-me o terço e não tinha preguiça de nada. Depois cresceu, ficou manhosa, buchuda, desaprendeu a rezar e nunca mais fez promessa nenhuma para mim. Foi uma perda em meu coração. Da noite para o dia, ela se desiluminou. Era alva, parecia um gato branco; ficou cinza e fedorenta, parecia um esgoto velho, e todos diziam que o motivo era que havia sido mal amada. O primeiro filho “escorregou para a privada”. O segundo nunca nem mostrou barriga. Ficamos na dúvida sobre se era pura invenção de seus miolos endoidecidos, impressionados ainda pela perda do primeiro, ou se o bebê escorregou de novo antes mesmo de dar mostras ao corpo. Mas a gente não gostava de ficar em dúvida sobre Lindinha. Nem com pena.
Um dia acordamos, sol de rachar, chão esfumaçando, para completar era domingo. Acordei com o grito agudo e abusado da avó atrás de Lindinha. Resposta só do eco da voz irritada. Ninguém sabia, ninguém vira, ninguém ouvira. A respiração parou e o sol também. Em cima de minha cabeça. Rachando tudo. Meu coco, minhas cicatrizes, o meu coração. Fiquei imóvel na calçada, assim, durante catorze dias, e até o vento parou. Eu só ouvia o zumbido das moscas-de-sol e o rádio de pilha tocando música sertaneja, ao fundo, bem baixinho.
No décimo quinto dia, acordei. Algum dia depois, estava na cidade e vi Lindinha. Ela pegou o mesmo ônibus que eu. Não havia mais assento, ela ficou de pé. O cabelo espichado, cor-de-rosa crepom, a unha pintada, as roupas afetadas. Era você mesmo, Lindinha? Não mudou só de endereço? Sua unha estava tão crescida que desisti de me apresentar, adulto, a ti: fiquei com medo do tamanho do arranhão. Chegou o meu ponto, desci; me arrependi para sempre de não ter ido até você. Você se lembra daquela metáfora do abacate? A casca é maleável, o caroço é a essência, e a essência não muda. E o abacate mais gostoso é o quase verde, quase maduro.
Lindinha, sua ausência me faz falta.
Ou é a sua presença?
(catão.)
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