do esmalte da leoa
Esqueci de te contar que a Quarta ainda está de pé. Continuamos nossas vidas como se sua ausência não tivesse acontecido; houve um ou dois dias de lamentação cretina até que chegou a Quarta, e ninguém estava realmente te devendo a alma para se resguardar da cachaça apenas em tua homenagem. Afinal, mesmo do outro lado do Atlântico, soube que já estava você em cada bar como se fora a casa, tão familiar com os cinzeiros europeus como se já soubessem trocar segredos íntimos. As coceiras decorrentes do álcool voltaram também, dessa vez desceram para as pernas, o vermelhidão está menos exposto, mas queimando feito vento gelado em dia de neve intensa. Esta noite, quando estava à mesa, os berimbaus na academia da esquina começaram a se manifestar novamente: aquilo era tão escandaloso quando ouvíamos, nós dois, na cozinha, que ríamos da irritação boba que nos causava — pensava eu que ria da irritação boba que me causava. Sei agora que ria mesmo era para te agradar, era para dar continuidade e razão ao teu sorriso. Esta noite, meros berimbaus. Apenas que não os acho mais escandalosos: o barulho, ou o som, do instrumento é sinal da existência de motivo. Mesmo com tua partida, todos os teus amigos, e nisto incluo a mim mesmo, continuaram com a rotina usual, as segundas-feiras de lamentação, as terças de peixe cru, na quarta vamos à Quarta, na quinta e na sexta tudo já virou uma coisa só. Outro dia acordei e pensei haver esquecido de te contar que o preço no Jogatina subiu, e por isso, agora, vamos todos ter de parar com o vício fictício. É verdade que não vai fazer muita falta — outras ausências estão em primeiro lugar. Não era essencial como o cigarro na tua boca. Fico lembrando de te contar certos detalhes e esquecendo que já não estás mais aqui, mas é que os teus recortes de revistas ainda estão espalhados pela casa, empoeirando o chão, as camisetas molhadas estão penduradas até hoje, o pão preto que você gosta já mofou, e me pego a questionar, muito preocupado, todas as noites antes de dormir: quem tira o esmalte vermelho-vulgar das unhas dos teus pés no domingo à tarde, ou melhor, quem desembaraça teu cabelo dourado quando acordas?
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