sábado, outubro 21, 2006

Gostoso agosto, um mês e quatro dias depois de teu aniversário, mas eu te perdôo desde já e vou te gostar pelo resto da eternidade. No último dia, você me contou de todas as suas trelas de criança. “Você é um espírito iluminado”, o marido da minha tia me disse. É porque sou bom de audição: vejo lágrimas a oceanos de distância, choro teu choro e guardo de olhos fechados todos os teus segredos. Eu sei que os mais especiais são as lembranças do sol da tua vida, dos raios cor-de-ouro que são o teu avô. Eu nunca te contei do meu: quando eu era menino, ia sempre visitar o meu avô. A ida era de manhã; na volta, já estava tudo escuro. Na ida, pela janela do carro, eu e as nuvens nos observávamos cúmplices, pois já sabíamos da minha artimanha secreta. Eu brincava com seus formatos de objetos ou de animais, de rostos desconfigurados ou maternais, e criava histórias com cada floco, mas nunca olhava para o sol, ardia, eu não podia me distrair – os leões me vigiavam. De noite eu tentava me lembrar de todos os detalhes das aventuras da manhã, escrevia mentalmente o meu livro, de uma vez só, tinha direito até a imaginar a capa e as dedicações, e o lançamento acontecia na Campinense, sempre. Aí eu adormecia sob a janela aberta, com o vento passeando pelos meus cabelos, vindo da escuridão do céu indefinido, e entre um cochilo e outro as histórias ficavam para trás, como o matagal cheiroso da cana que cercava nosso caminho. Eu acordava já na cama, e estava tão longe das nuvens que ficava triste por ter perdido minhas histórias, ficava triste por ter perdido o bloco branco de trevos verdes que meu avô me dera especialmente para as anotações secretas. Igual como ele fazia. Aí em agosto você me fez um bloco improvisado, eram trinta folhas brancas cortadas ao meio, só frente, sem verso. No verso tinha um trabalho seu da faculdade, uma tradução sobre a importância das notas de rodapé, e confesso que achei bem a sua cara, esperei que você tivesse traduzido com muito afinco, porque para te entender necessitava de umas cem notas de rodapé.


Quando você quis ver o bloco, depois, em setembro, disse que era para me conhecer melhor, eu não sabia que era para se despedir. Eu me dei a você, até roubou um tanto de folhas (só notei depois, quando a tradução parou de fazer seqüência), contou do cotidiano, das roupas e das sandálias, dos lanches, dos pais, da ida e de toda a travessura que é você. Eu devia ficar com raiva, você pegou muitas folhas de mim, e fiquei sem direito a resposta ou devolução, mas saiba que é por isso que eu te perdôo. Porque quando você voltar eu vou te receber ao som de queijos e vinhos, ao sabor da nossa trilha sonora favorita. E vamos soprar todos os leões de guarda, restando para mim (como um presente) apenas tua juba cor-de-mel e nossos dois corações feridos pelas viagens, mas acalentados pelas canções segredadas ao pé do ouvido.