quarta-feira, abril 25, 2007

Silenciava há tempos.
E há que tempos achava que tudo mais que tinha a dizer era desinteressante, ou chato demais.
Já fazia muito tempo sem ele, e tinha se convencido que sem ele é que era bom.
E talvez fosse. Sei lá. Mal sabia o que vinha dos outros e na verdade, agora não queria dar nada, receber nada. Um período morto, assumido, dessa vez. Onde tudo se digere.

Acordou um pouco confusa, com os lençois bagunçados e olhou as lanternas, finalmente instaladas em volta da janela. Achou tudo sem graça.
Tomou um copo de leite, que já meio azedo na geladeira.
Lembrou.
Sentiu uma dor que nem ficar em pé. Sentou.
Ele de novo. Ele de novo.
E sentiu um enorme nojo de todo o resto.

Nào queria se alimentar do passado, nem viver futuro algum. O presente, esse presente insuportavelmente tedioso e silencioso é que era ela, bem sabia.
E as vezes, sorrindo na janela do onibus, parecia até a vida ser mais leve.
Sorriu sentada.
Levantou. E chorou como há tempos não chorava.
Chorou e achou que ia afogar.
Convaleceu doente. Obrigada agora a entender a sua incapacidade de dizer, qualquer coisa que fosse sincera. de toda a dor que trazia.


m.

sábado, abril 14, 2007

adendo

e o fogo - nao se deixe levar por essas aparentes contradicoes da vida - aprecia com muito gosto a chuva, eu tambem aprecio com muito gosto a chuva, apesar de que eu sinto frio, bastante frio, ainda aprecio a chuva, mesmo assim eu ainda aprecio a chuva. para tudo ha uma razao de ser. a minha razao para a chuva, alem do deleite olfato-visual, minha razao eh que a chuva, se for a primeira chuva do ano, protege da gripe pro resto do mesmo ano. de verdade. todo dia primeiro de janeiro eu sinto um fogo interno que so mesmo em primeiro de janeiro, e por isso vou no quintal, ligo a mangueira e chove. eu comecei a pensar inversamente, e como o mundo fez mais sentido. o fogo aprecia com muito gosto a chuva, pois a chuva lhe da a razao de ser.

sexta-feira, abril 06, 2007

me chamo fogo.

encontrou uma caixa de sapato antiga e amarelada, de uma marca que nunca vira ou ouvira falar, mas, apesar da estrangeirice daquele pequeno bau reluzente de tesouros secretos e escondidos, havia um especial detalhe que lhe conferia total familiaridade para com a caixa, algo maternal: "valentina" na tampa, escrito forte e com hidrocor preto, indicando claramente que ali havia uma dona, e que ali voce nao deveria estar. sequer pensou duas vezes: tarde demais para alguem como ela. abriu cuidadosa e vagarosamente para nao deixar escapar um segundo que fosse daquele momento unico de prazer quando avancamos secretamente sobre os segredos alheios, quase tremendo, quase suando - lhe encantava as historias de amores proibidos, de aventuras perigosas, de perigos passageiros de vida ou morte, onde a vida, naturalmente, triunfaria. lhe encantava se meter em tais situacoes, pois desejava treinar e aperfeicoar suas habilidades de se safar de seus crimes de maneira perfeita e insuspeita. e, embora repetisse insistentemente para o seu cerebro que tinha tido sucesso no trabalho sujo, nao entendia por que, mas seu coracao nao obedecia quando seus olhos cruzavam os da vitima.

abriu a tampa devagar e com cuidado, ate mesmo com carinho, como se a caixa fosse sua. nao estava enganada: era uma caixa de lembrancas. sucesso. lembrancas alheias. sucesso. cartas, vidros secos de perfumes, aneis, fitas de cetim, pedacos de pano, de cabelos, de dentes, livros velhos. queria uma explicacao para cada objeto que encontrava ali. alguns lhe pareciam muito ordinarios, como os perfumes, pois que importancia tinham vidros ocos e vazios? e os dentes? pequenos, amarelados. analisava tambem os cabelos: ternamente amarrados em um fio de elastico como que para nao machucar os cachinhos infantis. reservou o ultimo momento para as cartas. sempre gostara de cartas, menos pelo conteudo, as vezes nao lhe interessava, as vezes eram apenas cartas velhas de um cumpadre para uma cumadre, mas amava as cartas pelas letras. cada carta tinha uma letra. a quem pertencia? sua letra, por exemplo, nao lhe pertencia. mudava de acordo com a figura feminina que idolatrava em determinado momento de sua vida. pensou nisso e se sentiu ordinaria como os perfumes velhos. achava que dessa forma lhe faltava um toque unico de personalidade. queria aprender a parar de roubar as letras das outras mulheres, mas elas eram tao mais bonitas, por dentro, por fora. sabia que deveria aprender a atrair admiracao, para que, assim, outras mulheres desejassem copiar a sua letra. e culpava sua mae e a punia nunca lhe imitando a letra.

sentiu todas as letras. eram muitas. havia letras solitarias, como se nao tivessem recebido resposta de valentina e por isso nunca mais voltado a escrever. por que entao permaneciam guardadas na caixa? havia letras insistentes, como a de um certo santiago, um homem de letra insistente e romantica, mas que nao era seu pai - o que lhe soava mais curioso e secreto. este, sim, recebeu muitas respostas!, pensava com uma malicia rara e feia para a sua idade. uma letra lhe parecia especial e viva, presente desde quando valentina era uma so ate o dia de ontem. pascoa de 1983. "a garganta continua doendo, mesmo assim fui para a confissao comunitaria hoje pela manha. hoje eh dia de pedir perdao, resolvi comecar por voce. hoje eu sei que as maes devem ser infinitamente amorosas e compreensivas com os seus filhos." que susto. parou de ler. por alguma razao sentia medo de saber. uma historia que se repetia, mas ainda nao havia se dado conta. teria tempo e gana suficientes para mudar o curso de um destino?

mesmo em vista da pouca idade, da pouca responsabilidade, de um coracao tolhido, ja conhecia os diversos sentimentos que poderia vir a sentir quando cometia seus crimes secretos. hoje sentia solidao. sabia que alguem, assim, daquele tamanho nao tinha direito a sentir solidao, e isso lhe causava uma dupla solidao. e sentia-se triste tambem, pois tudo ao seu redor era poesia. apesar das borboletas de asas amarelas, da musica da natureza que circundava a sua infancia, dos seus pes descalcos, livres, livres para se sujarem na terra, na agua, na grama, para se machucar nos troncos das arvores sem sentir medo, sem sentir culpa, apenas livres, apesar de tudo ao seu redor estar repleto de beleza, sentia-se triste pois nao se via parte, nao se via dentro, nao se via bonita, e, cansada da inveja e do ciume, se permitia esquecer por um momento e brincar no jardim da sua infancia, entre flores coloridas e sem nome, num momento em que ainda podia se sentir inocente, num momento em que todos a observavam calados e admiravam em coro e em segredo a sua felicidade forte e em chamas, a sua beleza intensa a caminho do desabrochar: auto-perdao. da poesia plena e eterna.





(SC.)