quarta-feira, outubro 25, 2006

do esmalte da leoa

Esqueci de te contar que a Quarta ainda está de pé. Continuamos nossas vidas como se sua ausência não tivesse acontecido; houve um ou dois dias de lamentação cretina até que chegou a Quarta, e ninguém estava realmente te devendo a alma para se resguardar da cachaça apenas em tua homenagem. Afinal, mesmo do outro lado do Atlântico, soube que já estava você em cada bar como se fora a casa, tão familiar com os cinzeiros europeus como se já soubessem trocar segredos íntimos. As coceiras decorrentes do álcool voltaram também, dessa vez desceram para as pernas, o vermelhidão está menos exposto, mas queimando feito vento gelado em dia de neve intensa. Esta noite, quando estava à mesa, os berimbaus na academia da esquina começaram a se manifestar novamente: aquilo era tão escandaloso quando ouvíamos, nós dois, na cozinha, que ríamos da irritação boba que nos causava — pensava eu que ria da irritação boba que me causava. Sei agora que ria mesmo era para te agradar, era para dar continuidade e razão ao teu sorriso. Esta noite, meros berimbaus. Apenas que não os acho mais escandalosos: o barulho, ou o som, do instrumento é sinal da existência de motivo. Mesmo com tua partida, todos os teus amigos, e nisto incluo a mim mesmo, continuaram com a rotina usual, as segundas-feiras de lamentação, as terças de peixe cru, na quarta vamos à Quarta, na quinta e na sexta tudo já virou uma coisa só. Outro dia acordei e pensei haver esquecido de te contar que o preço no Jogatina subiu, e por isso, agora, vamos todos ter de parar com o vício fictício. É verdade que não vai fazer muita falta — outras ausências estão em primeiro lugar. Não era essencial como o cigarro na tua boca. Fico lembrando de te contar certos detalhes e esquecendo que já não estás mais aqui, mas é que os teus recortes de revistas ainda estão espalhados pela casa, empoeirando o chão, as camisetas molhadas estão penduradas até hoje, o pão preto que você gosta já mofou, e me pego a questionar, muito preocupado, todas as noites antes de dormir: quem tira o esmalte vermelho-vulgar das unhas dos teus pés no domingo à tarde, ou melhor, quem desembaraça teu cabelo dourado quando acordas?

domingo, outubro 22, 2006

voltando pra casa, uma noite, sentiu que ia morrer de solidão.

sábado, outubro 21, 2006

sentanda em um balcao de um bar pediu um shot.
riu, infantil, do trocadilho, enquanto o garcon lhe olhava com desprezo como se ela ja estivesse bebada.
engoliu a bebida, pediu mais uma.
ouviu um pedaço de vida de alguem e viu se lhe servia.
A mulher contava um caso de um homem que havia esquecido o caminho de casa. Com o barulho do bar escuro e de luzes vermelhas, nao conseguiu destinguir se era jovem ou velho. ficou com essa frase. Ele saiu e na hora de voltar, nao sabia mais para onde.
A mulher contava muito espantada enquanto a outra lhe fazia bocas e soltava algumas breves interjeiçoes de espanto.
ela, intimamente, pensava ser aquilo algo comum, de se acontecer um dia.

colocou a mao na bolsa rota, que foi a unica coisa que conseguiu encontrar no meio da pouca mudanca que tinha. Certificou-se de que suas chaves, ainda sem um chaveiro novo, estavam ali. Pensou no caminho e constatou que sabia para onde voltar.

-mais um.
disse com a voz ja um pouco alterada.

outra conversa.
voce sabia que vai ter um eclipse lunar e que ele acontece.....
-bah,eclipses.
outra!

o garcom lhe serviu com certa violencia.
Ja se punha algo decomposta. com um dos ombros desnudos e os cabelos algo embaracados. Ela tinha uns longos e cheios cabelos claros.
leaozinho, a chamavam no jardim de infancia.
Ela adorava, pensando que o motivo era sua forca. Demorou ate entender que se tratava de seus cabelos desajeitados, dos quais nunca havia gostado muito.
quando crianca, era uma menina magricela, um tanto desproporcional, feia se pode dizer. nunca entendeu direito porque seu professor adorava lhe passar as maos nas pernas.

ele havia a amado, Ele.
mas ela amava mais a si. e bebeu mais tres tragos ao pensar nisso.
ela amava mesmo a si?

teria ainda muito que arrumar na casa. e a longo prazo, comprar tudo -de-novo.
nao tinha a menor vontade.

bebeu, bebeu, ate sentir que nao podia mais se levantar.
e entao levantou, pagou e foi embora. buscando o caminho de volta.
se punha quase a uma provacao.

caminhou pelas ruas cambaleando.
Chegou ao seu novo predio e o achou mesmo muito feio. Cinza, com grades descascando.
buscou as chaves. nao as sentia mas ouvia o barulho que faziam. mandou-lhes ficarem caladas,
e entrou.


m.

Gostoso agosto, um mês e quatro dias depois de teu aniversário, mas eu te perdôo desde já e vou te gostar pelo resto da eternidade. No último dia, você me contou de todas as suas trelas de criança. “Você é um espírito iluminado”, o marido da minha tia me disse. É porque sou bom de audição: vejo lágrimas a oceanos de distância, choro teu choro e guardo de olhos fechados todos os teus segredos. Eu sei que os mais especiais são as lembranças do sol da tua vida, dos raios cor-de-ouro que são o teu avô. Eu nunca te contei do meu: quando eu era menino, ia sempre visitar o meu avô. A ida era de manhã; na volta, já estava tudo escuro. Na ida, pela janela do carro, eu e as nuvens nos observávamos cúmplices, pois já sabíamos da minha artimanha secreta. Eu brincava com seus formatos de objetos ou de animais, de rostos desconfigurados ou maternais, e criava histórias com cada floco, mas nunca olhava para o sol, ardia, eu não podia me distrair – os leões me vigiavam. De noite eu tentava me lembrar de todos os detalhes das aventuras da manhã, escrevia mentalmente o meu livro, de uma vez só, tinha direito até a imaginar a capa e as dedicações, e o lançamento acontecia na Campinense, sempre. Aí eu adormecia sob a janela aberta, com o vento passeando pelos meus cabelos, vindo da escuridão do céu indefinido, e entre um cochilo e outro as histórias ficavam para trás, como o matagal cheiroso da cana que cercava nosso caminho. Eu acordava já na cama, e estava tão longe das nuvens que ficava triste por ter perdido minhas histórias, ficava triste por ter perdido o bloco branco de trevos verdes que meu avô me dera especialmente para as anotações secretas. Igual como ele fazia. Aí em agosto você me fez um bloco improvisado, eram trinta folhas brancas cortadas ao meio, só frente, sem verso. No verso tinha um trabalho seu da faculdade, uma tradução sobre a importância das notas de rodapé, e confesso que achei bem a sua cara, esperei que você tivesse traduzido com muito afinco, porque para te entender necessitava de umas cem notas de rodapé.


Quando você quis ver o bloco, depois, em setembro, disse que era para me conhecer melhor, eu não sabia que era para se despedir. Eu me dei a você, até roubou um tanto de folhas (só notei depois, quando a tradução parou de fazer seqüência), contou do cotidiano, das roupas e das sandálias, dos lanches, dos pais, da ida e de toda a travessura que é você. Eu devia ficar com raiva, você pegou muitas folhas de mim, e fiquei sem direito a resposta ou devolução, mas saiba que é por isso que eu te perdôo. Porque quando você voltar eu vou te receber ao som de queijos e vinhos, ao sabor da nossa trilha sonora favorita. E vamos soprar todos os leões de guarda, restando para mim (como um presente) apenas tua juba cor-de-mel e nossos dois corações feridos pelas viagens, mas acalentados pelas canções segredadas ao pé do ouvido.

quarta-feira, outubro 11, 2006

No portão da casa que fora deles por todo esse tempo, ela ainda parou. Largou a mala e a caixa no chão, fazendo um barulho alto.
Algo ali dentro se quebrou.
Olhou a janela, onde a cortina, que ela mesma havia costurado balançava. Sorriu melancólica, lembrando-se como gostava de ver a essa hora a cortina balançando, enquanto o por do sol fazia a gentileza de lhe invadir o quarto.
agora nåo conseguia sentir nenhuma emoção.
Chorou ainda por isso. Diante de tanta frieza que esta pessoa - ela - fitava a sua casa.
Andava tão vazia que so sentia emoção na falta de emoção.
Não sabia o que ele iria pensar de sua carta.
E com o ultimo vento da ultima tarde sentiu tanto medo que não pode se mover. Se sentiu indo embora.
E a esta altura ele ja devia estar indo tambem. Os dois sempre se sentiram muito um ao outro.
Fazendo muito esforço sacou o celular da bolsa e chamou um taxi. A quem mais havia de chamar?

Pos a caixa, a mala e por fim entrou , dando a direçao ao taxista.
o homem dirigiu.
- Como faço para abrir a janela?
nesse instante a janela ja lhe ia pela metade.
que rapido, ela pensou. As coisas...
- Assim esta bom?
- uhum..
resmungou ela, interrompida em mais de suas elocubraçoes

apertava sua mala com força, deixando os dedos vermelhos. Não podia perder a unica identidade que ainda lhe restava.
Ela pos a cabeça para fora e deixou que o vento frio lhe tomasse o rosto. Os cabelos embaraçavam e se enchiam de poeira; ficavam duros.
Assim como os dedos. E tudo mais.
Sentiu que ia paralizar de medo mais uma vez.
Acho que se via presa dentro de algo muito grande. Sem saidas.
Sentiu-se extremamente cansada, apesar do seu dia ter acabado de começar.
Adormecemos. Ali mesmo, com a cabeça pra fora.

m.

domingo, outubro 01, 2006

despedida

Ela escrevera uma carta para ele contando, com calma e tristeza, todos os motivos. Iniciou com os relatos do dia. Listou, meticulosamente tudo que havia feito em uma segunda feira tão cinza, quanto aquela. Listou-lhe as compras da feira e do mercado. Contou o que vestia, as bijouterias já gastas e a sandalinha de couro que ganhou de sua falecida avó em outros tempos, nos quais, hoje, ela já não reconheceria a si mesma.
Lhe disse isso e lembrou-se de sua infância. "Como eu era sapeca". - E aqui largou a caneta e riu uma gargalhada cheia. Há que tempos não ouvia essa palavra.
Estou mesmo perdida no tempo, pensou.
E constatando que a tristeza havia lhe voltado, continuou a escrever concentrada.
Contou-lhe dos longos lanches com seus avós e sem querer, lhe escapou no papel, o quanto sentiu-se sozinha, tantas vezes. desde que se deu conta que não havia tempo no mundo.
E já não havia naquele tempo.
Seus pais nunca o tiveram. Nem tampouco os pais dos amigos. E quando ela pedira tempo aos céus ou a papai noel, o máximo que teve foi um relógio, muito grande e feio.
Sentiu preguiça de explicar a ele, que apesar de ama-la sempre considerava suas idéias algo malucas ou exageradas.
Mas, sabia que tinha que faze-lo. Agora. Pois, as malas, o cachorro em sua casinha e a caixa com os seus livros preferidos, já iam dispostas no chão, ao lado dos seus pés.
Tentou dizer-lhe o quanto o amava, mas nunca conseguia dizer nada direito.
Ela nao tinha tempo para viver, e sabia que por certo ele não teria tempo de vive-la também. - Acredito que ela tinha alguma certeza, pois já ia pela página doze e acabara de apresentar o seu problema. Quando pretendia ser sucinta.
Sem saber, ela cria que descrever-lhe o dia era muito mais importante do que falar-lhe diretamente. Mas, perdeu-se em sua proposta de explicar a ele, o que mesmo?
Escreveu.
Estou indo embora.
Ela estava indo embora. E o amava muito.
Ela não tinha tempo, e tinha urgência. Considerava que não tinha muita personalidade também, mas isso não escreveu.
O tempo a correr a deixava tão nervosa que tudo que conseguia fazer era sentar-se em um banco, pôr as mãos na cabeça e suspirar. E ao largar a caneta mais uma vez, foi exatamente o que fez.
Mais que isso, ela não poderia.
Dobrou o papel, beijou a carta e saiu.

m.